Artigo, Marco Antônio Floriano Bittencourt - Crédito rural: solução para o passivo bilionário

Há quem comente que o passivo do crédito rural superou em muito os R$ 100 bilhões, afora aquelas situações onde as dívidas foram cedidas de forma duvidosa para a União Federal num provável e legal encontro de contas com os bancos, em especial o Banco do Brasil. Comenta-se, ainda, algo em torno de quarenta bilhões de reais cedidos à União.

Ocorre, por regra, que a dinâmica do crédito rural apresentada pelos bancos e constantemente debatida pelo judiciário, políticos e coligados limita-se à causa do problema, aguardando outro prolongamento nas contas. Em estudo realizado ao longo de alguns anos verificamos que a causa principal do inadimplemento dos produtores rurais estava vinculada a não observância das regras de liberação de crédito rural instituídas pelo Banco Central e Sistema Nacional de Crédito Rural-SNCR. Isto porque o repassador do recurso financeiro (banco), que recebe a verba subsidiada para fomentar a produção agrícola, não fica adstrito ao determinado pelo Banco Central e SNCR, usufruindo dos recursos como se fossem seus. A prova disto é a chamada operação “mata-mata”, onde o produtor pactua nova operação de crédito rural com o intuito de efetuar o pagamento de dívida anterior e, com isto, arrecadar mais capital para o futuro plantio. Veja-se que o banco paga com verba subsidiada pela União o débito anterior altamente onerado e lançado em desfavor do produtor rural, retendo, muitas vezes, 100% do novo capital. 

Então, na realidade, temos verba subsidiada para agricultura que é utilizada para pagamento do agente financeiro. Esta prática se consolida quando o agente financiador retém parte do crédito público como remuneração da operação. Assim, a remuneração do mútuo se dá com dinheiro público. O agente retém crédito público com o objetivo de saldar débito oriundo da operação anterior. É neste momento que ocorre a prática do “mata-mata” com dinheiro público. O fato é que ao longo do período de cinco anos o valor principal devido representa em média no máximo um terço do saldo devedor exigido, o que torna de pronto, impagável a dívida.

A Resolução nº. 3.208, emitida pelo Banco Central do Brasil em 24 de junho de 2004, informa que segundo as regras de crédito rural nenhuma outra despesa pode ser exigida do produtor, salvo os valores de gastos à sua conta pela instituição financeira ou decorrentes de expressa disposição legal. Importante fazermos referência novamente às chamadas “vendas casadas” ou compra dos “pacotes de serviços” impostos pelo banco quando da liberação do crédito rural. As únicas despesas que podem integrar o cálculo a ser cobrado do produtor rural, conforme Resoluções nº. 3.208 e nº. 3.515, artigo 1º, Inciso I, ambas emitidas pelo Banco Central em 24 de junho de 2004, são: a) Remuneração Financeira a ser limitada pelo Banco Central do Brasil; b) Imposto Sobre Operações Financeiras; c) Custo de Prestação de Serviço; d) Prêmio do Seguro; e) Sanções Pecuniárias; f) Prêmios em Contratos de Opção de Venda do mesmo produto agropecuário objeto do financiamento de custeio ou comercialização em bolsas de mercadorias e futuros nacionais; g) Taxas e Emolumentos referentes a estas operações de contratos de opção. 

A Resolução nº. 3.746, emitida pelo Banco Central em 30 de junho de 2009, que dispõe sobre o assunto, chega à complexidade de mencionar que é vedada a transferência de dívida rural amparada por recursos controlados, salvo quando decorrente de divisão de imóvel rural por doação, inventário, separação judicial de cônjuges ou divórcio. Outra problemática é a abordagem do judiciário em razão da matéria; primeiro porque está esquecida a proteção constitucional do produtor; segundo, o tratamento dado ao crédito rural como se fosse uma operação de crédito corriqueira que, no final, decretará a falência de fato produtor. Esta referência é de vital importância tendo em vista que, via de regra, quando o produtor já está negativado, e consequentemente inadimplente, o banco busca “renegociar” as dívidas de acordo com as taxas sugeridas pelo Banco Central e SNCR, o que deveria ter ocorrido desde a primeira contratação. Também é importante frisar que a cada “renegociação” o banco aplica todos os encargos possíveis, inclusive os de inadimplemento. O novo crédito tomado pelo produtor embute, por claro, todo o ônus da operação anterior, constituindo-se uma “bola de neve”.

Quando o pleito chega ao judiciário, em síntese, o magistrado determinará a manutenção dos juros contratados abaixo de 12% ao ano, e, aqueles acima deste índice (“juros legais de 12% – doze por cento”), serão limitados neste percentual, somados à correção monetária e aos encargos de inadimplemento. Bom, se analisarmos uma operação que se estendeu por cinco ou dez anos de forma continuada e não considerarmos o recurso efetivamente tomado como base do cálculo, fixando juros em 12% ao ano e encargos financeiros que o produtor de fato não deu causa, torna-se matematicamente impagável a conta.

Dizer que o banco não pode cobrar o serviço para administração do recurso está equivocado; ocorre que além de onerar esta administração, o próprio banco inviabiliza o pagamento do saldo devedor. O certo é que depois de muito sobrecarregar o valor alcançado ao produtor surge a cessão do crédito para a União, sob justificativa de pagamento fácil. Ademais, muitos produtores são levados a pensar que a cessão é a única saída para o endividamento. Certamente que os créditos quando cedidos para a União, eternizados em sua origem por vícios que os maculam, se inadimplidos e posteriormente judicializados, representam em média a cobrança de dez ou mais vezes o valor principal do recurso tomado na origem. Também impagável. Agrega-se a isto a posição privilegiada da União nos processos judiciais, que possui prerrogativas e garantias no procedimento que o devedor não tem, restringindo a defesa do produtor rural. 

A solução: O regramento para liberação das verbas de custeio rural existe e é aplicável, porém, quando da sua liberação deve atender aquelas determinações constantes nas resoluções e normativas do Banco Central e SNCR. As instituições financeiras filiadas aos SNCR, que por opção se credenciaram, devem obrigatoriamente estar abertas a processos administrativos, assim como ocorre em outros órgãos públicos, como Tribunal de Contas e Receita Federal, conferindo ao produtor o direito de ampla defesa administrativa. Referidos procedimentos elucidam, e em muitos casos expurgam do débito irregularidades existentes, oportunizando ao produtor o pagamento do valor real devido ou pelo menos questioná-lo na esfera administrativa. E, ainda na hipótese de demanda judicial, o histórico da contratação já estaria constituído, facilitando o entendimento do julgador.

O processo administrativo traria as dívidas para patamares reais, tornando possível ao produtor o pagamento do débito de acordo com sua capacidade e possibilidade, como determina o SNCR. Em casos especiais, como quebra da safra ou variação excessiva do preço do produto, o produtor poderia justificar perante a instituição financeira o atraso no adimplemento e, quiçá, prorrogar sua conta nos mesmos patamares contratados, evitando a incidência de encargos de inadimplemento e aumento exagerado do passivo. Assim, resguardado estaria o ganho da instituição financeira, conforme regra do SNCR, e o status constitucional do produtor rural. Da mesma forma, propiciaria aos devedores em atraso a possibilidade de rever os cálculos, evitando a demanda judicial ou a venda da propriedade rural que garante a operação financeira. Importante salientar que o binômio capacidade e possibilidade do produtor rural está presente nestas modalidades de contratações, com mais razão o intermédio de procedimento administrativo, no qual jamais o produtor irá financiar ou refinanciar valor maior que a sua capacidade produtiva. ONDE TRAMITARÁ O PROCEDIMENTO: Se as verbas para a atividade rural são subsidiadas pela União, esta deveria efetuar o controle do recebimento dos valores, em especial aqueles pertencentes ao passivo bilionário. 

O processo administrativo teria início na instituição financeira repassadora do Crédito Rural e após sua instrução administrativa e normativa com instâncias julgadoras definidas seria encaminhado para parecer da União. Referido procedimento existe e funciona, porém não está regulamentado. Na prática facilita ao negociador da instituição financeira viabilizar a capacidade e a possibilidade de pagamento, além de quesitos adicionais a serem analisados caso a caso. Entretanto, a tramitação de um procedimento administrativo sem regulamentação sugere uma análise no mínimo desproporcional daquela realmente pretendida. A proporcionalidade da relação estaria respaldada por parecer da União Federal, proprietária do recurso emprestado. Veja-se que não haveria necessidade de programas de alongamento de dívidas – como securitização -, tampouco abarrotaria mais o Poder Judiciário com matéria de interesse nacionalou categoria que representa mais de 22% do Produto Interno Bruto.

Analisando as determinações do Conselho Nacional de Justiça verifica-se que o grande objetivo é abrir caminho para o processo administrativo, que encontra base, por exemplo, no item 26, “d”, II, da Resolução nº. 4.107 do Banco Central do Brasil, qual determina que a instituição financeira deverá analisar proposta de negociação acompanhada de informações técnicas que permitam ao banco comprovar o fato gerador da incapacidade de pagamento, sua intensidade, o percentual de redução de renda provocado e o tempo estimado como necessário para que a renda retorne ao patamar previsto no projeto de crédito realizado, analisando a situação de renegociação – caso a caso.

Cristalino é o propósito do processo administrativo que visa evitar o ajuizamento de demanda judicial, pois tem como condão normalizar o cadastro de crédito do devedor e seus correlacionados, antecipar o tempo de recuperação do crédito à instituição financeira, bem como efetuar o pagamento da dívida, reduzindo ao máximo a onerosidade e buscando a solução da controvérsia sem a utilização do Poder Judiciário. Assim o processo administrativo estará respaldado nos contratos pactuados, extratos bancários, avaliações de bens, capacidade de pagamento do produtor, entre outros; além da análise contratual segundo entendimentos já pacificados junto ao Superior Tribunal de Justiça, quando necessário. O Conselho Nacional de Justiça também editou a Resolução nº. 125, de 29 de novembro de 2010, que visa, além de fomentar o acordo judicial, a possibilidade das partes buscarem a solução do conflito de forma consensual, consolidando, assim, uma política permanente de incentivo e aperfeiçoamento dos mecanismos de soluções consensuais de controvérsias. O próprio Banco do Brasil S.A., maior repassador de recurso agrícola, em seu portal digital faz menção à Lei nº. 12.527, de 18 de novembro de 2011, que em seu art. 1º, II, dispõe sobre os procedimentos a serem observados pelos entes públicos, estando entre eles as sociedades de economia mista – objetivando garantir às pessoas interessadas o acesso a todas as informações necessárias, inclusive àquelas preponderantes para processo administrativo. Porém, na prática, não é o que acontece, isto por falta da obrigatoriedade de tramitação do processo administrativo, o qual deverá acontecer de modo que, coloque fim ou diminua para patamares reais o endividamento rural.

A atividade rural e as normas obedecidas pelos produtores rurais bem como a quem a eles cooperam, como órgãos fomentadores de recursos, conforme disposições do Banco Central, estão dispostas no artigo 970 do Código Civil: “A lei assegurará tratamento favorecido, diferenciado e simplificado ao empresário rural e ao pequeno empresário, quanto à inscrição e aos efeitos daí decorrentes”. A Constituição Federal em seu artigo 187 também dispõe que o produtor rural encontra-se em posição de destaque devido à sua atividade preponderante, determinando o Dispositivo Constitucional em comento uma análise profunda da atividade supramencionada. O texto disposto no Artigo Constitucional acima citado confere ao produtor rural um tratamento coerente da própria União e seus coligados – INSTITUIÇOES FINANCEIRAS -, pois ancorado em políticas de desenvolvimento e tratamento econômico diferenciados. 

Além de toda a legislação pertinente, o Manual de Crédito Rural, que codifica as normas aprovadas pelo Conselho Monetário Nacional – CMN e aquelas divulgadas pelo Banco Central relativas ao crédito rural devem ser aplicadas, tanto aos produtores, quanto às instituições financeiras, que operam no Sistema Nacional de Crédito Rural – SNCR. Considera-se, portanto, de acordo com a Circular nº. 1.268, emitida pelo Banco Central em 23 de dezembro de 1987, crédito rural o suprimento de recursos financeiros, por instituições do Sistema Nacional de Crédito Rural – SNCR, para aplicação exclusiva às condições estabelecidas no Manual de Crédito Rural não constituindo para tanto, em seu núcleo legal, a finalidade de financiamento para pagamento de dívidas bancárias ou repactuações. 

Segundo a Resolução nº. 3.137, emitida pelo Banco Central em 31 de outubro de 2003, o objeto do crédito rural é a liberação de verbas para custeio, investimento e comercialização rural, sendo que o custeio destina-se exclusivamente para cobrir as despesas normais dos ciclos produtivos, tendo como beneficiário, em regra, o produtor rural. Assim, a operação de custeio possui como único objetivo a captação de recursos para o cultivo agrícola. Qualquer outro destino do recurso financeiro agrícola, que não seja a lavoura, infringirá o regramento imposto pelo Banco Central e demais existentes. Podemos concluir que o produtor rural desempenha atividade econômica relevante à sociedade. Então, qualquer procedimento adotado na busca da satisfação da pretensão de resolução do passivo bilionário possui viés que demanda extrema cautela. Não se pode admitir alongar números de dívidas que são fictícios ou que satisfaçam apenas interesses das instituições tomadoras destes recursos.

A política de crédito rural imposta até este momento impossibilita a continuidade da atividade econômica do produtor, ferindo frontalmente a liberdade econômica, Constituição Federal e a própria continuidade da atividade produtiva. Marginalizar a categoria ruralista, nominando-os como maus pagadores ou detentores de recursos fáceis, não condiz com a realidade que se impõe.

Advogado Marco Antônio Floriano Bittencourt



8 comentários:

Anônimo disse...

O texto do Dr. Marco Antônio é esclarecedor e destaca a situação temerária em que se encontra o setor produtivo agrícola que tanto abastece as nossas cidades. O produtor rural deve ser valorizado para o benefício de todos e, para tanto, protegido das instituições financeiras que buscam o lucro de todas as formas possíveis, tornando as dívidas anteriormente assumidas impagáveis pelos pequenos produtores ou aqueles que vivenciaram quebra de safra. Pagar a conta de forma justa e possível. Parabéns pelo texto!

Ismael Almeida disse...

O texto destaca de maneira precisa a real situação por que passam milhares de produtores rurais do país. À mercê das burocracias e do emaranhado de normas que regem esses contratos, acabam por pagar muito além do que realmente devem. E o pior é que o Governo, com suas medidas emergenciais de "socorro" acabam piorando a situação ao aumentar a bola de neve que essas operações se tornaram. Com base nessa lógica defendida pelo Dr. Marco Antônio, a Senadora Ana Amélia apresentou um projeto de lei exatamente para criar esse instrumento legal que permita a realização desse procedimento para conferir realidade nesses processos de renegociação de dívidas. Trata-se do PLS 354/2014 que está em tramitação no Senado Federal. Parabéns pelo artigo.

Carlos Frederico Feldmann - OAB/RS 59002 disse...

Novamente (aliás, neste mesmo blog), agora de forma, digamos, mais técnica, creio eu para dirimir dúvidas havidas, vejo publicado artigo da lavra do Dr. Marco Antônio Bittencourt, no qual volta-se a enfatizar as nuances do "crédito rural". São profissionais assim, aguerridos, combativos, militantes, enfim, mas principalmente embasados na lei, que este país precisa. Congratulo o colega pelo brilhantismo.

Anônimo disse...

Parabéns Dr Marco Bittencourt

Anônimo disse...

Parabéns Dr Marco Bittencourt pelo belo trabalho e projeto de lei apresentado no Senado de extrema importância na solução deste gigante passivo bilionário inerente ao crédito rural que deve sim

Adriana Block disse...

Parabéns, Dr. Marco Antonio pelo excelente projeto.
Com certeza inúmeros produtores rurais terão a oportunidade de serem valorizados com este novo projeto de lei.
E as instituições financeiras reenquadradas a uma realidade em que só poderão cobrar o que realmente é devido e não ficarem cobrando valores, taxas, correções e demais acréscimos exorbitantes, como vem acontecendo ao longo de muitos anos, visando lucrar de todos os lados possíveis e impossíveis.
Os produtores rurais devem ser valorizados pelo que produzem e indiretamente alimentam milhares de pessoas em todo o País.
Belíssimo Artigo o PLS 354/2014.

EDGAR PASSOS do TOCANTINS disse...

Ufa... Até que enfim uma cabeça iluminada possuidora da sensibilidade ouviu o grito agonizante do homem do campo. Essa tese é vencedora e será a redenção do produtor rural. Espero que lá no congresso nacional exista uma maioria sensível a essa causa capaz de aprová-la. Quero aqui neste espaço democrático parabenizar este jovem jurista Marco Bittencourt e lhe dizer o quanto estou feliz e confiante na juventude do meu Brasil. Este país tem jeito sim.
Edgar Passos do TOCANTINS - edgartocantins@hotmail.com

Mariana Dias Almeida disse...

De maneira clara e objetiva tal texto esboça o impacto que a aplicação deste projeto pode gerar na ecomia nacional prezando, basicamente, pela legalidade que se impõe.
Parabéns Dr. Marco Antônio, todo o seu esforço torna-se agora bons frutos!

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