Há algumas semanas, em artigo neste espaço, afirmei que o
sistema político brasileiro não está preparado para lidar com uma crise da
magnitude e complexidade da que vivemos. Se há uma marca típica desta crise, é
a absoluta predominância dos interesses pessoais e partidários que se sobrepõem
despudoradamente sobre os interesses nacionais.
Entre outras perdas que este processo de crises
acumuladas acarreta, encontra-se a inviabilização do exercício da função de
substituição institucional. Essa função, atributo de democracias estáveis, é
invariavelmente ausente em democracias instáveis. Ela consiste na capacidade de
uma instituição de assumir a defesa de valores ou funções indispensáveis à vida
social organizada, que as organizações responsáveis por eles deixaram de
proteger, por motivos políticos.
Karl Polanyi, na sua obra clássica The
GreatTransformation, analisa, de maneira notavelmente original, a revolução
industrial na Inglaterra detalhando como se deu esse processo ao longo do
século 19. Quem defende a sociedade e os segmentos populacionais dos desajustes
sociais gerados pela industrialização, quando as organizações que deveriam
defendê-los se revelam incapazes de ou desinteressadas em fazê-lo?
Em situações como essas, pode acontecer que outros
segmentos da população ou mesmo outras organizações protejam – por interesse ou
por motivos políticos – aqueles que não dispõem dos meios para se defender das
consequências do processo social em curso. Foi o que aconteceu na Inglaterra,
quando diferentes setores da sociedade e da política inglesa assumiram a
responsabilidade pela proteção dos fundamentos da nação britânica, impondo
limites de social, econômica e política às tendências tirânicas do mercado, na
primeira fase da revolução industrial.
“O ser humano, tratado como força de trabalho, a natureza
tratada exclusivamente como terra, eram concebidos apenas como bens à venda no
mercado. Entretanto, tratar o ser humano e a natureza pela ficção da
‘commodity’ desconsiderava o fato de que entregar o destino do solo e das
pessoas ligadas à sua exploração ao mercado equivalia a aniquilá-los” (Polanyi,
op. cit.).
Em consequência, a contramedida defensiva destinada a
conter a ação socialmente desagregadora do mercado exigia alguma forma de
intervencionismo que, por definição não poderia vir do mercado. A Lei
Speenhamland foi o muro erguido para defender as organizações rurais
tradicionais.
Coube, então, aos senhores rurais da Inglaterra, que
ainda detinham o poder político – por interesse ou por inclinação –, proteger a
agricultura e a vida dos agricultores do impacto avassalador das mudanças que
varriam a sociedade rural e transformavam a agricultura numa precária atividade
industrial. Por um período crítico de 40 anos essa ação retardou o progresso
econômico industrial e quando, em 1834, o Parlamento da reforma eleitoral
(1832) aboliu Spenhamland, os nobres ingleses mudaram o foco de sua resistência
ao mercado extremado para as leis fabris.
Interesses políticos, econômicos e nacionais de enorme
importância estavam também em jogo. Politicamente tratava-se também de proteger
as bases rurais da sociedade inglesa do avanço da crescentemente poderosa
burguesia, assegurando a sobrevivência da aristocracia numa sociedade urbana e
industrial na qual, em tese, ela não mais exerceria função socialmente
necessária.
O interesse próprio, arejadamente entendido, levou então
a aristocracia a unir-se politicamente primeiro aos trabalhadores rurais e a
partir da segunda metade do século 19 aos operários industriais
(torysocialism), em ambos os casos contra a burguesia, o inimigo comum.
Foi essa ação política lúcida que preservou a monarquia e
a aristocracia para os séculos 20 e 21, evitou as traumáticas revoluções
sociais e políticas, incorporou um protecionismo seletivo do Estado como
instrumento de defesa do próprio sistema de mercado, aparou por meio da
legislação social as arestas mais desumanizadoras da revolução industrial,
tornou viável o sindicato como mecanismo de autoproteção do trabalhador e criou
as condições para o surgimento do partido trabalhista.
Como assinala Polanyi, “enquanto a ruína da agricultura
era postergada na Inglaterra por uma geração, os nobres conservadores impuseram
novas técnicas de convivência numa sociedade industrial de mercado. A lei das
10 horas de trabalho de 1847, que Marx equivocadamente saudou como a primeira
vitória do socialismo, foi obra de reacionários inteligentes”.
Também nos EUA o princípio da substituição institucional
tem desativado crises e resolvido problemas quando outras instituições se
revelaram incapacitadas. Exemplo emblemático foi a ação da Suprema Corte na
década de 1960, quando, numa sucessão de decisões históricas, se desincumbiu da
tarefa de defesa e promoção dos direitos civis dos negros, substituindo o
Executivo e Legislativos politicamente bloqueados.
O Brasil hoje se encontra num impasse. Excetuados a
força-tarefa comandada pelo juiz Sergio Moro e algumas personalidades notáveis
do Legislativo e do Judiciário, a maioria da elite institucional do País
alinha-se com interesses particulares e partidários; a Nação, já desiludida,
aguarda em vão um desfecho exemplar para a oceânica corrupção que nos cerca; as
organizações aparelhadas pelo partido no poder há 12 anos dedicam-se a bloquear
os caminhos para as soluções da crise; a oposição cultiva a cautela ao limite
da paralisia; a Nação, dividida pela propaganda do nós contra eles, corteja os
riscos do ódio político.
Dificilmente se encontraria hoje exemplo mais eloquente
da fragilidade de uma democracia instável do que a situação de múltiplas crises
em que nos encontramos. Daqui a alguns anos talvez olhemos para trás e,
constrangidos, nos perguntemos: como foi possível chegar ao nível degradante a
que chegamos?
* FRANCISCO FERRAZ É PROFESSOR DE CIÊNCIA
POLÍTICA E EX-REITOR DA UFRGS, PÓS-GRADUADO EM PRINCETON, É DIRETOR
DO SITE POLÍTICAPARAPOLÍTICOS.COM.BR
3 comentários:
belíssima explanação...está faltando muito de ideias claras e desvinculadas de partidarismos...As esquerdas de 1985 para cá destruiram o pensamento braSILEIRO...SÓ SE FALA EM DINHEIRO O TEMPO TODO...
Para o Brasil mudar de rumo, será preciso fazer uma faxina geral em algumas instituições num primeiro momento, a saber:
-TSE;
-STF;
-Congresso;
-Mídia;
-FFAA.
Como? Só com a mobilização e a força total do povo!
É simples, desnecessário tanta erupção intelectual:
VIGE, de fato, PRESIDENCIALISMO POR COOPTAÇÃO, para os trouxas ouvirem é PRESIDENCIALISMO DE COALISÃO.
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