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Sujeito multidão (José de Souza Martins)
Fervilham as interpretações das manifestações da
sexta-feira 13 e, sobretudo, da do dia 15, domingo. A primeira, manifestação de
corporações sindicais de filiação ideológica e partidária explícita. A segunda,
surpreendentemente, com certa característica de manifestação política de
famílias, um fato novo na quadra histórica iniciada com a redemocratização do
País. Para o estudioso do comportamento coletivo, a diferença e o conflito
político e ideológico entre as duas manifestações não está na disputa em
relação à legitimidade do mandato da atual presidente da República, como
temeram os próprios membros do governo. O conflito se expressou na guerra de
conceitos.
Sobretudo, do método de elaboração dos conceitos que
procuram dar sentido ao embate entre os que estão do lado do governo e os que
estão do “outro lado”. As partes confrontando-se na curiosa tentativa de
adivinhar quem eram os manifestantes.
A multidão não precisa ter a identidade adivinhada. Ela
não é o eleitor da última eleição, não é o branco da desqualificação proposta
pela facção do governo, descabida numa sociedade que historicamente se
reconhece como mestiça de múltiplas mestiçagens. A multidão é a multidão,
identidade temporária e provisória que esgota sua significação e sua função na
fração de tempo em que se manifesta nas ruas e no modo como se expressa. É um
sujeito que se dissolve no fim da festa.
Pela frequência e pelas peculiaridades de suas demandas,
vai ficando claro que a multidão é novo sujeito da sociedade brasileira. Novo
sujeito do processo político em conflito com os velhos sujeitos, os da política
como ação de estereótipos, os do cidadão aprisionado na camisa de força de
conceitos rígidos forjados ainda na cultura da luta de classes. Mas multidão
não é classe nem é raça. A multidão desconstrói o regime político dualista das
facções antagônicas que a tendência antirrepublicana inaugurada em 2003 impôs
ao País como ideologia dos pobres contra os ricos, dos negros contra os
brancos, das elites contra o povo. São meias verdades de um pensamento
partidário fundado num senso comum pseudossociológico que explica e justifica o
que convém e descarta o que não convém.
As multidões que se manifestaram entre nós nos últimos
tempos nem sequer são uma única e mesma multidão, embora se possa encontrar
nelas o substrato unificador do descontentamento e de uma consciência social de
impaciência com os abusos do poder, o mais motivador dos quais é o da
corrupção. Mas também o da mentira. Cobranças dessas manifestações recentes,
evidenciadas em cartazes rabiscados sobre a mesa da cozinha, cobram o que foi
prometido e questionam o que foi omitido como simples técnica para enganar o
eleitorado e obter o poder. Nesse sentido, as multidões foram às ruas para
questionar não apenas a corrupção e a mentira, mas para questionar, também, a
ambição de poder pelo poder, o propósito do poder sem a contrapartida do dever.
Em suma, a multidão foi às ruas para questionar pacificamente,
republicanamente, a traição aos princípios e valores da República e do
republicanismo. Curiosamente, a demanda das multidões do dia 15 foi uma demanda
claramente parlamentarista contra a decadente República presidencialista e
hereditária.
A premissa de um dos ministros que impugnaram as
manifestações populares logo após seu encerramento é a de que quem vota no
partido do governo tem que ter com ele uma fidelidade de membro do próprio
governo, embora nele não esteja, mais a de cúmplice que a de cidadão.
Concepção baseada no pressuposto de que a sociedade seria
uma organização de duas bandas em que as pessoas são prisioneiras de uma banda
ou de outra, e a própria sociedade dominada por um movimento pendular que
reitera o mesmo. Essa é uma concepção pré-moderna e puramente teatral da
realidade social e política. Por trás dessas ideias está a doutrina da luta de
classes, na sua versão pré-marxista, ainda distante da interpretação
propriamente dialética e sociológica das duas últimas décadas do século 19.
Os malabarismos explicativos para as manifestações de rua
destes dias dizem muito mais respeito à inatualidade de um pensamento
supostamente de esquerda que se extraviou nos descaminhos da vulgarização
interpretativa. E, também, na desatenção ao fato de que a sociedade
contemporânea e pós-utópica se tornou uma sociedade complexa e fragmentária. Os
sujeitos concebidos anacronicamente como robôs da totalidade pétrea do dualismo
interpretativo são mera e retrógrada ficção. Ninguém é o todo da classe social
a que supostamente pertence porque, no fim das contas, ninguém pertence a nada.
A classe só é substantiva em momentos muito singulares da história social e
política. Esta já não é, propriamente, uma sociedade de sujeitos, mas de
sujeitos alienados que vivem o tempo todo as incertezas da condição de objeto.
Quando a sociedade entra em crise, como a nossa, agora, a própria crise os
desperta para a lucidez desalienadora que se viu nas ruas do País.
(José de Souza Martins é sociólogo, professor emérito da
Faculdade de Filosofia da USP e autor, entre outros, De linchamentos - a
justiça popular no Brasil (Contexto))
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