Artigo, Demétrio Magnolli - O povo organizado

A finalidade do Decreto 8.243 é moldar uma 'sociedade civil' adaptada às estratégias de poder do governo
O Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) converteu-se numa linha de montagem de artefatos ideológicos. Entre tantos países, escolheu a Venezuela chavista como sede de sua única filial no exterior. Num relatório produzido pela filial, lê-se o seguinte: "O modelo bolivariano afasta-se, sem dúvidas, da democracia representativa despolitizadora que predomina ainda hoje no mundo. Supera o modelo idealizado pelos pais fundadores da república norte-americana". As duas frases ajudam a decifrar o sentido do decreto presidencial que instaura a "democracia participativa".
As palavras cruciais são "democracia representativa despolitizadora". De fato, o princípio da representação sustenta-se sobre o pressuposto de que os cidadãos têm outros afazeres além da política. A maioria esmagadora das pessoas consagra o seu tempo ao trabalho produtivo, aos estudos, ao lazer, aos afetos e aos amores. Os militantes políticos, pelo contrário, dedicam-se essencialmente à carreira política, que enxergam como fonte de poder, prestígio, dinheiro ou (raramente) como ferramenta para a "reforma do mundo". O Decreto 8.243, dos "conselhos participativos", procura reduzir a abrangência da "democracia representativa despolitizadora". É um golpe dos militantes políticos contra as pessoas comuns, cuja "participação" perde valor nos centros de decisão de políticas públicas.
O conceito de sociedade civil (ou "esfera pública") é objeto de complexas discussões filosóficas, mas existe um consenso básico enunciado por Habermas: a autoridade estatal não faz parte dela. O governo brasileiro, contudo, baixou um decreto que oferece uma definição oficial de sociedade civil ("o cidadão, os coletivos, os movimentos sociais institucionalizados ou não institucionalizados, suas redes e suas organizações"). Em todo o debate sobre o Decreto 8.243 não há nada mais chocante do que a ausência de um grito coletivo de indignação da sociedade civil diante dessa suprema arrogância estatal. No Brasil, o Estado nasceu antes da nação e, de certo modo, a esculpiu segundo suas conveniências. Uma prova da persistente fragilidade de nossa sociedade civil encontra-se nesse silêncio --e, mais ainda, na recepção calorosa do decreto por intelectuais que ganham a vida falando sobre a sociedade civil.
A finalidade do Decreto 8.243 é moldar uma "sociedade civil" adaptada às estratégias de poder do governo: o "povo organizado", no dialeto dos militantes. Na prática, a seleção dos "coletivos" e "movimentos sociais" com assento nos "conselhos participativos" equivale à atribuição de rótulos de legitimidade oficial a determinadas lideranças sociais. Sob o lulopetismo, o Estado não apenas define a sociedade civil, mas também traça os seus contornos, excluindo os "indesejáveis" da esfera pública. "Participação"? Não: a "democracia participativa" pretende restringir a fiscalização social do Estado aos associados ideológicos do governo.
O Decreto 8.243 nasce no solo arado pela crise de legitimidade do sistema político-partidário e pela desmoralização do poder parlamentar. A "sociedade civil" que o decreto delineia tem a vocação de operar como um parlamento paralelo. Gilberto Carvalho, nomeado secretário-geral da "sociedade civil" estatizada, não mente quando diz que o embrião dessa "democracia participativa" já existe, na forma de "conselhos" e "conferências nacionais" controlados por "movimentos sociais" financiados, direta ou indiretamente, pelo governo.
No final do segundo mandato de Lula, realizou-se a Conferência Nacional de Comunicação (Confecom), um encontro desses "movimentos sociais" promovido pelo governo. A Confecom aprovou o "controle social da mídia" --isto é, no dialeto dos militantes, a censura à imprensa. Para florescer, a "sociedade civil" estatizada precisa amordaçar a sociedade civil.

7 comentários:

Anônimo disse...

ISSO É GOLPE!
Já está passando da hora dos militares, enquanto grupo representativo da sociedade, entrar nessa onda da "democracia representativa despolitizada" e mostrar de uma vez a sua força e ocupar os espaços no governo, já que a esquerda tupiniquim quer tando "oferecer" participação aos grupos sociais!
NOS MILICOS EU AINDA CONFIO!
FORA PETRALHAS!

Anônimo disse...

Parabéns pelo texto. Claríssimo; objetivo, elucidador sobre êsse monstrengo proto-ditatorial do governo petista.~É uma pena que pouquíssimos jornalistas tenham se ocupado de desmascarar êsse assalto à democracia. Salvam-se os de sempre: Você, Reinaldo Azevedo, Augusto Nunes, Dora Kramer, Guilherme Fiuza e mais alguns - poucos, bem poucos. Parece que essa categoria, jornalistas, está brincando de colocar o laço no próprio pescoço. Só falta o cadafalso.

Mordaz disse...

Parece que o Governo imita os centros de participação popular da Alemanha nazista e da Itália fascista.

Anônimo disse...

o povo organizado, leia-se elite organizada para retomar seus direitos naturais, ou seja, vagas nas melhores facu (federal), altos concursos públicos, privilégios e andar de avião, carrões, mansões, ou seja, tudo de bom só para eles. Os 4 P (pobre, pu../ao; petistas e pobres) que se fod.... Vivas aos lacerdinhas/bundinhas/coxinhas.

J.F. de Pinedo Kasper disse...

Pode-se avaliar tais conselhos pelas comissões da "verdade". Quem escolheu seus membros? O que justifica eles pretenderem a revisão da Lei da Anistia? Se a Lei foi aprovada pelo Congresso Nacional, como podem tais comissões passarem por cima dela? Os membros dos tas conselhos, a exemplo das comissões da "verdade", sem votos, irão ditar as políticas públicas do país. E, certamente, por representarem a "vontade do povo", passarão por cima da Constituição, inclusive.

Anônimo disse...

o imperador romano adriano fez muito pelo povão: expandiu a cidadania, proibiu torturas, eliminou intermediários comerciais incentivando o cooperativismo e a autogestão.
para fazer o bem do povo, precisou vencer, na quebra de braço e no enxadrismo, casas políticas corrompidíssimas, como um senado essencialmente formado de grandes proprietários.
o senado odiava adriano como a unasur odeia chávez e a globo e a veja e a arquibancada do "mil real" odeia lula.
se a direita tem muito menos representação em movimentos sociais, se os direitinha são muito menos politizados, ainda é tempo.
democracia direta, participativa, em que o cidadão deve se coçar, se virar, pra se informar, se educar, para o jogo, o fazer democrático, é o que se espera REALMENTE de uma democracia.
a democracia americana bipartidária e onde quase ninguém vota NÃO É DEMOCRACIA SAUDÁVEL.

Anônimo disse...

A TUA DEMOCRACIA, "rafael no céu" do demônio Barba, é a dos irmãos Castros, e o teus conhecimentos de história não engana os leitores do Polibio. Vá bostar textos em sítios de tua turma da Papuda.

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