A ilustração ao lado mostra uma escola estadual fechada para os alunos. Casos como este levaram o deputado a afirmar que alguns servidores são vadios. -
A carta aberta a seguir é de se intitula "Não somos vadios", reação a declarações do líder do PMDB na Assembléia, segundo o qual alguns servidores estaduais são vadios e não trabalham.
O texto está disponibilizado no site do jornal Correio do Povo.
Leia:
Vou me permitir a dispensa desses pronomes de tratamento
pomposos, comuns quando nós, do povão, precisamos que nos dirigir aos nossos
empregados mais “elevados” (afinal, nós que os pagamos para que trabalhem para
nós, não?). Até porque o senhor me ofendeu, o que automaticamente implica numa
dispensa de respeito da minha parte. Que não se preocupe, não usarei. Não
costumo ofender pessoas que nem conheço. E eu não o conheço.
Antes, vou explicar: sou escritor. Não vadio. Mas
escritor não é profissão no Brasil, então na verdade sou Policial Militar, o
único que, como escritor, tem a honra de escrever para um grande jornal em
nosso país. Sou mais um soldado do povo. Não sou dado à vadiagem.
Tudo o que já escrevi na minha vida, todos os livros que
publiquei, artigos, crônicas, poemas e prêmios literários que recebi, foram
produtos de minhas horas de folga. Pois nem nestes momentos costumo vadiar:
escrevo, leio, cuido dos meus filhos, cuidei muito tempo dos meus pais doentes,
faço palestras para estudantes – caso se interesse pelo conteúdo, visite meu
site (www.oscarbessi.com.br)-, associações comunitárias, igrejas, empresas ou
quem mais estiver a fim de saber sobre cidadania e instrumentos de humanização
para que possamos diminuir a violência cotidiana. Uma intersecção que me
motiva. Enfim: o que escrevo aqui no Correio do Povo, embora eu não saiba se o
tens o hábito de ler.
Hoje estou doente. Preferia, de coração, não estar, mas
pago o preço de trabalhos quadriplicados e alguns senões de sobrecargas
particulares. Acumulei todas as funções administrativas e operacionais de um
batalhão e o autorizo a ver meu histórico policial, (sério, não me importo). Se
não cansar de ler, saiba que ali verá menos de 5% de minha atuação nas ruas, ao
lado dos meus soldados, algo que sempre priorizei (penso que nosso povo paga
impostos para isto), mesmo sabendo que minhas atribuições burocráticas eram
consideradas mais importantes. Certo, ninguém me mandou escolher esta
profissão. Tampouco tolerar, passivo e obediente, o resultado histórico da
falta de estrutura das corporações de segurança pública, assim como se costuma
fazer na saúde, educação e outras áreas. Competência que não falta ao se dar
ágil guarida a inúteis – e me questionei isto, com todo respeito, ao ler sobre
a quantidade de assessores demitidos após uma crise pessoal do Deputado Jardel.
Que utilidade teria tanta gente, com tão belo salário, num único gabinete?
Cabem naquele espaço? Sim, estou doente e é de uma forma séria. Como outros
servidores, arco com os custos dos meus remédios e tratamento, já que os
médicos correm do IPE e, desamparados, temos que correr para qualquer lado.
Após 25 anos e 7 meses na ativa, não pensei que passaria por uma situação assim
e não aprecio vivê-la. Rogo estar bom logo, pois tenho saudade das ruas, dos
meus colegas de farda, das escolas, das comunidades.
A sorte que sigo atuando em eventos como escritor, onde a
arma e o conflito não estão presentes e, assim, não coloco em risco quem jurei
defender. E a literatura, além de evitar um crescimento da minha doença, serve
como terapia. Sim, escrevo por instinto de cidadania, mas também para me curar.
E não me sinto vadio.
Perdoe por explicações pessoais. Como é carta aberta,
preciso me deixar transparente. E fiquei ofendido com a afirmação sobre os
vadios, pois me ela inclui de forma direta. Servi na zona norte de Porto
Alegre, em Alvorada, em Canoas, além de cidades do interior. Lugares onde
coisas nada fáceis foram vividas – mas que são do cotidiano policial, eu sei,
como ser quase morto com um tiro no rosto, ou ver um colega morrer ao teu lado
em confronto. Normal. Mas vivi momentos ímpares de felicidade em meu ofício.
Quando resolvi dedicar quatro anos de minha juventude para obter meu diploma,
tendo apenas alguns finais de semana para ir para casa, ou quando cheguei a
trabalhar 36h ininterruptas numa viatura do 11º BPM, na capital, ou quando
passei com minha equipe por cinco noites a fio enfiado no mato, em cerco de
assalto a banco, não me senti vadio. Estou chateado por ser chamado assim.
Tenho colegas de farda fantásticos. Conheci professores
maravilhosos. Gente que, mesmo tratados com desrespeito e descaso, seguem na
luta de uma causa. Querem um mundo melhor. E não apenas para os seus filhos,
mas para os filhos de todos. Essa gente batalhadora que, como eu, já frequentou
tantas vezes as listas negras dos que devem na praça, essa gente que se obriga
a jornadas alucinadas e triplicadas de trabalho para garantir um mínimo de
sustento e uma vida decente aos seus. Essa gente, deputado, não é vadia. Um
professor de 60h, que trabalha manhã, tarde e noite, que fora destes horários
ainda precisar ler, planejar aulas, estudar, corrigir provas e trabalhos, não é
vadio. Um soldado que leva um tiro e fica paraplégico, ao enfrentar
assaltantes, não é vadio. Mas os chamaste assim.
Muitos desses servidores ainda dedicam suas horas de
folga para realizar trabalhos voluntários em suas comunidades. Para mudar a
vida das pessoas que o estado esqueceu. Sei disto, pois me orgulho de também
participar, deputado, em algumas frentes, e tenho muitos parceiros nesta luta.
Nenhum vadio.
Não somos vadios quando ficamos doentes de não suportar
mais, por tantos anos sem trégua, a sobrecarga de trabalho para tentar corrigir
as falhas de um estado mal administrado. Sim, mal administrado. E não posso
usar outro argumento se temos Superporto, temos Pólo Petroquímico, temos REFAP,
temos grandes indústrias, temos invejosa produção agro-pecuária. Aí vejo o
Acre. O que tem o Acre? Por que o pobre Acre, que não tem nada disso, está melhor
do que nós?
Só sei que não é por causa destes que o deputado chama de
vadios. Ganhamos muito pouco para quebrar um estado tão potente. Não somos
perfeitos, todo grupo humano tem seus bons e maus integrantes. Mas a explicação
desta quebradeira, se é que há quebradeira, está em outras mãos, literalmente.
Não fomos nós, servidores comuns do estado, nestas lidas
básicas de atender o povo nos campos e cidades deste pampa, que fizemos farras
com combustíveis, diárias e por aí vai. Nem nos concedemos gordos aumentos
(como aconteceu já duas vezes, em poucos anos, com os deputados estaduais),
embora até precisássemos, e muito. Nós pegamos um ou mais ônibus lotados ainda
na madrugada, ou pagamos combustível do nosso bolso, para ir ao trabalho. Não
temos carro, gasolina e motoristas custeados pelos impostos dos cidadãos. Somos
apenas cidadãos comuns, deputado.
Não somos vadios.
Espero, sinceramente, que peça desculpas aos policiais
que arriscam sua vida todos os dias e noites, aos professores que são a única porta
de esperança de tantos excluídos pelo próprio estado, a todos os servidores que
se entregam para atender o povo gaúcho e, que por tanta dedicação sem ao menos
uma nesga de respeito como recompensa, adoecem, ou têm a necessidade de parar
um pouco para não morrer. Os que, hoje, precisam levar até papel higiênico ao
seu local de trabalho para que um mínimo de decência sobreviva.
Minha manifestação não traz raiva. É apenas um lamento
que brota desse resquício de dignidade que insistimos em carregar conosco. E
sua declaração praticamente anula o efeito do todos os remédios que tomo.
Torcerei para que se desculpe. Nem com palavras, com
ações. Preferimos. Um olhar mais atento e humano respeitaria quem não merece
ser chamado assim.
Não somos vadios, deputado.
Nunca seremos.