O artigo Serão os semitas humanos? (revista Caros Amigos,
nº 68, novembro de 2002), do jornalista Georges Bourdoukan, é uma arenga
antissemita que ao leitor atento, judeu ou não, só pode causar repulsa. Mas é
importante começar este texto com uma menção a ele, porque Bourdoukan, que tem
muito influência no meio trotskista, reproduz a revelação de uma história,
segundo ele, secreta do sionismo, elaborada e difundida ainda nos tempos da
extinta União Soviética, a partir da segunda metade dos anos 1960 e, hoje,
propagada mundo afora, por movimentos pró-palestinos, como o tal Comitê
Santamariense de Solidariedade ao Povo Palestino, ligado ao Foro Social Mundial
Palestina Livre. E não esqueçamos: O Foro se reuniu em Porto Alegre, há
dois anos, com o apoio do governo Tarso Genro, que é egresso do PC do B e
fundador do PRC (Partido Revolucionário Comunista), sigla com a qual veio a
abrigar-se no PT. O texto, enfim, reproduz, além de outras fabulações, a
narrativa de Ralph Schoenmann, um trotskista americano, no livro The Hidden
History of Zionism, de 1988. Em entrevista concedida à revista Teoria e Debates
do PT (edição nº 9, janeiro-março de 1989), para Marcus Sokol, líder, até hoje,
da tendência petista O Trabalho, ele afirmava que “em 1941, o partido de
Itzchak Shamir ( hoje, o Likud de Benjamin Netaniahu) concluiu um pacto militar
com o 3º Reich, que consistia em lutar ao lado dos alemães e fundar um estado
autoritário colonial, sob direção nazista.”.
A afirmativa era uma variante do material de propaganda
soviético produzido em ampla escala. Na militância comunista-confessional,
atuante nos campi universitários, no meio cultural e político partidário,
difunde-se esta ideologia, que também está na base da fundação do movimento
internacional BDS (Boicote, Desenvestimento e Sanções) contra Israel, criado em
2005 e financiado por ONGs internacionais, Irã, Arábia Saudita e Qatar (para
detalhes, ver Edwin Black, Financing the Flames, 2013). Artigos e livros como
os de Bourdoukan e Schoenmann explicam o recente pedido, feito à Reitoria da
UFSM, pelo Diretório Central de Estudantes (DCE) e associações de alunos e
professores da UFSM, por uma lista de alunos e professores
israelenses “presentes ou em perspectiva” naquela universidade. No Brasil,
este confessionalismo antissemita tem abrigo junto a petistas das tendências
Democracia Socialista (DS) e O Trabalho, além do PSOL, PC do B, PSOL, PSTU e
PCO. Todos atacam Israel de forma incendiária, em revistas como Vermelho,
Marxismo Vivo e Caros Amigos. O antissemitismo desta pregação é
autoexplicativo, seja pelo uso essencialista, depreciativo, do termo
"judeu", na menção que fazem a políticos israelenses, seja porque,
entre outras barbaridades racistas, afirmam que os judeus sionistas foram os
maiores aliados dos nazistas e corresponsáveis, acreditem, pela criação dos
campos de concentração!
Nos últimos 50 anos, o antissemitismo tornou-se mais
fácil de ser praticado sob o nome de antissionismo ou anti-israelismo. Basta
ler os textos dos seus expoentes, como Roger Garaudy, Robert Faurisson, Pierre
Guillaume, David Irwing, Serge Thion, Israel Shamir e Noham Chomsky, para citar
alguns dos mais conhecidos antissemitas e antissionistas de hoje, alinhados à
esquerda ideológico-confessional, que praticam distorções cínicas e se valem de
um arsenal de acusações mentirosas e depravadas para defender, alegadamente, a
causa palestina. Este ativismo tenta demonstrar a todo custo que Israel não
pode existir, porque é racista, fundamentalista, imperialista e por aí vai.
Bourdoukan representa o tipo de militância intelectual
profissionalizada antissemita dos atuais comunistas, a exemplo dos franceses
Thion e Guillaume, que dizem repudiar o racismo e orientar-se pelo
internacionalismo anti-imperalista. Eles reivindicam, obviamente, o marxismo como
fonte inspiradora. Há um manifesto de Guillaume, sobre a linha de pensamento da
editora antissemita Velha Toupeira (Paris), que invoca a "autoridade do
texto fundador de Karl Marx, ‘Sobre a questão judaica’", de 1843, para
defender o "antijudaismo radical sempre proclamado urbi et orbi (
...)". (P. Guillaume, Carta a Phillip Randa, La Vielle Taupe, 1998).
Eliminar o judaísmo, o sionismo e o Estado de Israel é,
como propugna Guillaume, e as seitas confessionais trotskistas que pululam nos
campi universitários do mundo todo, em apoio à causa palestina, é uma coisa.
Eliminar fisicamente os judeus, como os nazistas pretenderam, é outra. Os
sionistas, segundo eles, gostam de embaralhar tudo. Os judeus são pessoas como
todo mundo, mas o judaísmo e o sionismo, vade retro. Afinal, qual a razão do
sofrimento dos povos, da existência das guerras? Quem está promovendo o
genocídio palestino? A dominação judaica (dos governos, dos bancos, da mídia,
dos cartéis de petróleo)! Assim, na guerra santa contra os judeus-sionistas e
Israel, é preciso revelar como as coisas realmente são. Esta é a missão
revolucionária de Bourdoukan e da militância ligada ao movimento BDS, que,
diga-se em tempo, a cumprem de maneira metódica, como prova o caso de Santa
Maria, onde o DCE e as associações de docentes e funcionários da UFSM se
organizaram para solicitar aquela que, agora, é conhecida com a Lista
Burmann-Schlosser. Cito algumas das revelações de Bourdoukan: o hierarca
nazista Heirich Heidrych era judeu. A russa judia Golda Meir dizia que as
crianças palestinas eram animais de duas patas, e Israel foi criado pelos
nazistas. Quem garante, surpreendam-se, é Hannah Arendt e os arquivos da
União Soviética!
Quem, pela primeira vez, passou a propagar esta espécie
de “revelação”, foram os soviéticos, depois da Guerra dos Seis Dias, em 1967. E
qual era a versão soviética para o surgimento do movimento sionista? A campanha
antissemita dos soviéticos, um aspecto permanente do regime totalitário depois
de 1967, era conduzida pelo nome em código de “antissionismo”, que se tornou
uma dissimulação para toda a variedade de antissemitismo. Nesta condição, foi
transplantado para a tese do anti-imperialismo leninista (ver o texto de Lênin,
canônico para todos os comunistas, Imperialismo, a fase adiantada do
capitalismo, de 1916). Os soviéticos, em sua doutrina oficial, adaptaram o
conceito de sionismo ao de colonialismo; e o estado sionista foi transformado
num posto avançado do imperialismo.
Alguém pode lembrar, aqui, que a União Soviética de
Stálin foi o primeiro país a reconhecer o Estado de Israel, depois de sua
criação, em 1948. Certo. Mas Stálin foi motivado por razões geopolíticas: ele
pretendia marcar, através de Israel, a presença russa no Oriente Médio, para
contrapor-se aos EUA, Inglaterra e França. Como não conseguiu, desde o começo
da década de 1950, a propaganda antissionista soviética sempre foi
intensificada e tornou-se mais abrangente, acentuando os vínculos entre o
sionismo, os judeus em geral e o judaísmo. Centenas de artigos, em revistas e
jornais por toda a União Soviética, retratavam os sionistas e os líderes
israelenses como elementos comprometidos em uma conspiração internacional, lado
a lado com as diretrizes dos antigos Protocolos dos Sábios de Sião, esta fraude
apócrifa clássica sobre a existência de um governo mundial judaico secreto,
produzido pela polícia czarista, no início do século XX (para mais
detalhes, ver Paul Johnson, História dos Judeus, 1987; Walter Laqueur, The
Changing Face of Anti-semitism, 2008).
Nos anos que se seguiram à Guerra dos Seis Dias, até
o colapso da máquina de propaganda soviética, em 1990, a URSS tornou-se a
fonte principal de material antissemita do mundo. Ela reunia matérias de
praticamente todo segmento arqueológico da história antijudaica, desde a antiguidade
clássica até o hitlerismo. O volume destes materiais começou a igualar-se com
os que os nazistas produziram. O talvez mais famoso livro deste acervo de
propaganda (que se espalhava por incessantes e repetitivos artigos e
radiodifusões até brochuras dirigidas) chama-se O Judaísmo e o Sionismo, de
Trofim Kychko (1968), no qual ele expõe “a ideia chauvinista da escolha de Deus
pelo povo judeu, da propaganda do messianismo e ideia de reinar sobre os
povos.” Em A Rastejante Contra-Revolução, de 1974, em outro livro clássico
desta propaganda, escrito por Vladimir Begun, se lê que “... a Bíblia é um
insuperável manual de sanguinolência, hipocrisia, traição, perfídia e
degenerescência moral.” As mesmas afirmações foram feitas, anos depois, por
José Saramago, o conhecido escritor português, que jamais negou seu stalinismo.
Agora, chamo atenção para a pedra de toque deste
antissemitismo descarado, de amplitude global, defendido, hoje, pelos
movimentos comunistas pós-soviéticos e trotskistas e transmutado em humanismo.
A história começou a circular na década de 1970 e apregoava que os sionistas
(israelenses) eram sucessores dos nazistas, afirmação “comprovada pela
evidência” de que o próprio Holocausto de Hitler fora uma conspiração
judaico-nazista para se livrar dos judeus pobres, que não podiam ser usados nos
planos sionistas. Na verdade, conforme se alegava, o próprio Hitler tirava seus
planos de Theodor Herzl, o fundador do sionismo político, em 1898. A revelação
soviética seguia: os líderes judaico-sionistas, que agiam sob as ordens de
judeus milionários que controlam o capital financeiro internacional, ajudaram a
SS e a Gestapo a arrebanhar judeus indesejados, ou para as câmaras de gás ou
para os kibutzim, iniciando a colonização judaica moderna da Palestina, e
desterrando a população árabe nativa, dando origem à dramática situação do povo
palestino. Essa conspiração judaico-nazista foi usada como fundamento, pela
propaganda soviética, para acusações de atrocidades contra os governos
israelenses, sobretudo durante e depois da Guerra do Líbano de 1982. A ilação,
aqui, era direta: como os sionistas já haviam se sentido felizes em se juntar a
Hitler no extermínio de seu próprio povo (isto foi publicado no Pravda, edição
de 17 de março de 1984), não causaria espanto que agora massacrassem árabes
libaneses e palestinos , que eles consideravam sub-humanos. A acusação
repetiu-se na 2ª Guerra do Líbano, em 2002 e nas guerras contra o Hamas, em
2013 e 2014. Judeus massacrando crianças palestinas em nome de sua política
colonialista.
Mesmo o mais singelo senso de prudência é mandado às
favas pelo fervor militante do antissemitismo comunista. Deve-se acentuar
que é grotesca a mentira sobre Golda Meyer, que jamais se referiu aos
palestinos de forma abjeta, como Bourdoukan afirma; e que o conhecido texto de
Hannah Arendt, Heichmann em Jerusalém, foi conspurcado pelo racismo hidrófobo
do articulista de Caros Amigos e da milícia da esquerda confessional..O que
ocorreu foi que as críticas de Hannah Arendt ao julgamento de Eichmann a
antipatizaram com a liderança do Mapai (o partido social-democrata, à época no
poder em Israel, sob a liderança de Ben Gurion), mas nem de forma remota este
fato respalda o delírio que Bourdoukan escreve, nos passos de Schoennman e
dos propagandistas soviéticos, de que Israel foi criado pelos nazistas!
O antissemitismo é uma patologia moral e política que
pode produzir um subtexto eivado de fantasmagoria em mentes menos preparadas
para discernir contra-informação e propaganda, por um lado, de informação, por
outro. Mas já produziu desastres suficientemente conhecidos para ser tolerado,
seja lá a que pretexto for. A verdade é que seus propagadores comunistas sempre
o exercitaram metodicamente com cinismo, em nome da fraternidade dos homens, e
com isto obtêm respaldo de organizações e grupelhos de fanáticos, de prosélitos
imbecilizados, adeptos de um marxismo-leninismo apodrecido e engajado numa
suposta luta de vale-tudo contra o opressivo Estado Judeu.
Bourdoukan é antissemita e escreve em Caros Amigos, uma
revista de esquerda, adepta do mesmo trotstkismo internacionalista
sindical-proletário-camponês-libertário-guevarista-maoísta-
humanista-revolucionário, que distingue a militância da Democracia
Socialista/PT, PSOL, PC do B, PSTU, PCO e do MST. A obsessão antijudaica
nestes, digamos, setores ideológicos, chegou a tal ponto que, em 1998, o
jornalista José Arbex Junior, editor especial da revista Caros Amigos, que se
diz ultrapacifista e também é muito ligado ao Movimento de Trabalhadores sem
Terra (MST), de João Pedro Stédile, escreveu um longo comentário sobre uma
notícia do Sunday Times, de Londres, segundo a qual os israelenses haviam
sintetizado um vírus letal que contamina apenas os árabes e poderia ser
propagado por ar ou água. Assim, a disseminação não apresentaria qualquer risco
aos judeus, se viesse a ocorrer nos territórios palestinos ocupados. A tolice
era explícita: afinal, para atingir o objetivo, o tal vírus teria de ser
imbecil a ponto de se achar capaz de distinguir entre o DNA de árabes e de
judeus ou de seja lá de quem for. O ponto aqui é que vírus não têm crenças,
logo não podem ser idiotas. Por isto, jamais haverá um tão tolo como os
antissemitas que acreditam, a exemplo de Arbex, que um vírus étnico possa
existir. Dias depois de sua publicação no Sunday Times, descobriu-se que a
notícia reproduzia parte uma novela de ficção de terceira-linha, jamais
publicada e escrita por um ex-funcionário de um instituto de pesquisas
israelense.
A asneira, inspirada na acusação medieval de que os judeus
envenenavam os poços durante a época da Perste Negra, na Europa, serviu para
Arbex discorrer sobre a sinistra ciência praticada secretamente pelo governo
israelense. Com base nela, o jornalista advertia para a degeneração moral dos
genocidas sionistas, capazes de criar um monstro que faria Hitler babar de
inveja. E, obviamente, esbravejava contra o silêncio da mídia mundial -
controlada pelos sionistas - sobre a revelação alarmante. O artigo de
Bourdoukan foi publicado no lugar certo. Depois de oferecer uma antevisão do
Armagedon racial made in Israel, Caros Amigos voltou a insistir na revelação de
que os sionistas foram corresponsáveis pela criação dos campos de concentração
nazistas. Afinal, alguém duvida do que são capazes os sionistas? Não dizia o russa
Golda Meyer, segundo Bourdoukan, que as crianças palestinas são bestas
caminhando sobre dois pés? Os antissemitas sempre foram assim mesmo. Se há algo
degenerado que ninguém seria capaz de fazer, então aparece algum judeu ou
sionista, como Golda Meyer, e faz. Nada que venha a causar estranheza. Afinal,
os judeus-sionistas eram os maiores aliados dos nazistas e inventaram um vírus
que dizima os árabes.
Resta-nos esperar que o Ministério Público Federal e,
logo depois, o Poder Judiciário, revelem as razões pelas quais essa gente, que
acredita e propaga esta espécie de lixo pelos campi universitários, digam quais
foram seus motivos para obter uma relação de israelenses na UFSM. Talvez tenham
descoberto que esta tara antissemita seja a expressão da luta humanista pela
libertação dos povos, em especial dos palestinos. Pode ser que provem que o
ódio aos judeus é inofensivo e progressista. E é de se crer que
não admitam ter cometido crime de ódio, pela certeza que têm de uma
invertida noção de legalidade, que os fez pedir uma lista de estudantes e
docentes israelenses à UFSM, além da convicção de contar com o respaldo
dos setores políticos da esquerda confessional. Considerada a naturalidade com
que queimam bandeiras de Israel nas ruas e que acusam Israel de atrocidades
constantes, em fóruns de debates, seminários e outros convescotes, não é de se
estranhar que, neste imbroglio todo, pensem eles ser as verdadeiras vítimas das
conspirações sionistas mundiais.