Carlos Fernando dos Santos Lima, da força-tarefa do
Ministério Público Federal que investiga corrupção e cartel na Petrobrás,
afirma que ‘o interesse privado é a real motivação dos atos públicos’. -
A entrevista a seguir foi concedida ao jornal "O Estado de S. Paulo". O editor recomenda a leitura atenta.
Os procuradores da força-tarefa da Operação Lava Jato
estão preocupados. Eles identificaram movimentos políticos que apontam para o
embrião de um projeto de lei que abrirá caminho às empreiteiras para acordos
“generosos”, que as livrem de sanções pesadas e assegure seu retorno ao mercado
praticamente sem restrições. Na prática, uma blindagem em benefício das maiores
empreiteiras do País.
Os procuradores intuem que a Lava Jato possa ter o mesmo
desfecho de outras grandes missões de combate ao colarinho branco, em que
investigadores acabaram punidos e os réus, absolvidos.
“Infelizmente, a despeito de todas as obrigações
internacionais assumidas pelo Brasil, as primeiras e únicas tentativas do
Governo após a publicação da Lei Anticorrupção foram sempre no sentido de
contorná-la, de desrespeitar o mínimo ético imposto por essa legislação”,
alerta o procurador da República Carlos Fernando dos Santos Lima, um dos
coordenadores da força-tarefa que desmontou o mais incrível esquema de propinas
na principal estatal do País.
No Congresso, um grupo de parlamentares prepara uma
proposta de mudança na Lei Anticorrupção para impedir a declaração de
inidoneidade de empresas – que as proíbe de contratar com órgãos públicos. Uma
subcomissão da Comissão de Fiscalização Financeira da Câmara trabalha em
proposta para ser enviada ao presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha
(PMDB-RJ).
Nesta entrevista ao Estadão, Carlos Lima reage à estratégia
das gigantes do setor que atribuem à Lava Jato a ruína de seus negócios.
“Demissões, paralisações de contratos, desaceleração da
economia não são consequências exclusivas das investigações”, afirma o
procurador.
ESTADÃO: Empresas acusadas de cartel pela força-tarefa
têm nos últimos meses anunciado a paralisação de contratos, com registros de
demissões, alegando terem sido afetadas pela Lava Jato. Como a Procuradoria
avalia?
PROCURADOR CARLOS FERNANDO DOS SANTOS LIMA: Demissões,
paralisações de contratos, desaceleração da economia brasileira não são
consequências exclusivas das investigações promovidas na Operação Lava Jato,
mas, antes de tudo, do mau gerenciamento de nossa economia pelo atual Governo.
No que tange aos efeitos econômicos das investigações, são estes, antes de
tudo, decorrências do naufrágio de um modelo de negócio, por parte das
empresas, e de uma forma de financiamento da maioria parlamentar, pelo Governo,
ambos incompatíveis com a lei e com o Estado Democrático de Direito. Querer culpar
as investigações da Operação Lava Jato, ou seja, querer culpar quem desnuda o
malfeito, aponta o malfeitor e ainda alcança rapidamente o ressarcimento, mesmo
que parcial, dos desvios, é aceitar que o único caminho de nosso país para o
desenvolvimento passa por fechar os olhos para o crime, ou mais, de acreditar
que essa estrada passa necessariamente pela aceitação das estruturas do crime
organizado ainda enraizadas em nossa sociedade.
O Brasil merece mais. Merece acreditar em quem trabalha
duro e honestamente. Mas sabemos que essa maioria honesta e silenciosa é
constantemente passada para trás por estruturas de poder que impedem a
competição real entre os agentes econômicos e que, em uma análise mais
profunda, são responsáveis pelas crises cíclicas de nosso capitalismo de
compadrio.
Há responsáveis por tudo isso, por óbvio, e eles são
necessariamente essas empresas que se cartelizaram e utilizaram de esquemas
diversos de corrupção da máquina estatal para perpetuarem seu ‘modelo de
negócio’, bem como são os inúmeros “empresários” de lavagem de dinheiro, que
propiciam as formas pelas quais essa corrupção é efetivada, e, por fim, são os
agentes políticos que controlam esses repasses com vista dos seus interesses
pessoais e político- partidário.
ESTADÃO: Como classifica a discussão de um projeto de lei
que abre caminho para acordos com as empreiteiras?
PROCURADOR CARLOS LIMA: Infelizmente, a despeito de todas
as obrigações internacionais assumidas pelo Brasil, as primeiras e únicas
tentativas do Governo após a publicação da Lei Anticorrupção foram sempre no
sentido de contorná-la, de desrespeitar o mínimo ético imposto por essa
legislação. Num esquema em que se evidencia a utilização da corrupção como meio
de se alcançar maioria parlamentar, o único caminho que pode levar a população
a crer novamente no sistema político passa pela completa apuração, pelo
processo e condenação daqueles que a Justiça entender haver provas de
corrupção. O sistema político precisa ser depurado, dentro das regras
constitucionais, o que inclui também a punição das empresas envolvidas, nos
termos da lei. Qualquer discurso no sentido de proteger essas empresas é
absurdo e desrespeitoso à população.
ESTADÃO: Qual o recado que se passa à sociedade caso esse
projeto seja aprovado pelo Congresso?
PROCURADOR CARLOS LIMA: O recado é que nada mudou.
Vivemos ainda num capitalismo de compadrio, em uma falsa República, onde o
interesse privado confunde-se com o público, ou melhor, o interesse privado é a
real motivação dos atos públicos. A mensagem é clara: qualquer um pode
trabalhar duro, pode tentar alcançar o sucesso, mas isso somente será permitido
a uma minoria que se apropriou dos mecanismos políticos e que pretende impedir
a entrada de novos competidores em seus “mercados”. Na agenda apreendida com
Paulo Roberto Costa há manuscrita uma frase de Millor Fernandes: “Acabar com a
corrupção é o objetivo supremo de quem ainda não chegou ao poder”. Pena que a
ironia de Millor não tenha sido percebida pelo ex-diretor da Petrobrás, e, pelo
jeito, pelos autores desse projeto-de-lei.
O sucesso no Brasil passa, para eles, em se corromper,
seja a pequena corrupção do cafezinho para agentes públicos, seja a grande
corrupção de se vincular a esquemas criminosos infiltrados no Governo e nos
partidos políticos.
Mas, ainda há Juízes em Berlim, há uma maioria de pessoas
de bem. Vamos confiar nelas.
ESTADÃO: Como tem agido o Executivo diante das
descobertas feitas pela força-tarefa nas investigações da Lava Jato? Tem havido
resposta, do ponto de vista de medidas que possam ajudar no combate efetivo à
corrupção?
PROCURADOR CARLOS LIMA: Nenhuma em verdade. Já passou um
ano da revelação do esquema e nada de efetivo foi feito. O Ministério Público
Federal, por sua 5ª Câmara e pela PGR, sugeriu 10 medidas que certamente, se
aprovadas, alcançarão um significativo incremento no combate à corrupção e à
impunidade. Outras entidades como a OAB e a CNBB também se manifestaram a
respeito de mudanças. Qual a mudança efetiva até agora? O que se vê é a
apropriação de parte do legislativo por interesses de investigados.
Há diversos estudos, inclusive de criminologia
especializada em crimes de colarinho branco nos Estados Unidos, que mostram que
o montante da punição e a perspectiva de punição ou de impunidade impactam a
decisão do criminoso do colarinho branco. Ele se corrompe porque os benefícios
são maiores do que os custos. Dentre os custos, estão montante e probabilidade
de punição. Não basta ter punição alta e impunidade, ou punição baixa e
efetiva. A aplicação da lei a esses casos deve tomar em conta que a
probabilidade de punição é muito baixa e que, para elevar o risco, o
desincentivo ao crime só será alcançada com firmes punições. As 10 medidas
propostas pelo Ministério Público melhorarão o cenário atual.
Além disso, o Governo vem instruindo seus órgãos de
combate à corrupção a se colocarem a reboque do interesse das empreiteiras sob
o falso argumento de que haverá um cataclisma se essas empreiteiras forem
punidas. Isso não acontecerá pois a expertise é dos engenheiros, dos técnicos,
dos operários dessas empresas, os quais facilmente poderão ser absorvidas por
outras empresas, nacionais ou estrangeiras.
A única expertise dos donos das empreiteiras envolvidas
na Operação Lava Jato é a de sobreviver em nosso capitalismo de compadrio, de
cometer crimes em detrimento do nosso país. Salvá-los, portanto, é permitir que
tudo continue como está.
ESTADÃO: Como a força-tarefa vê acordos de leniência das
empreiteiras?
PROCURADOR CARLOS LIMA: O instrumento da leniência,
previsto na lei que criou o CADE em relação aos crimes econômicos, e na lei
anticorrupção para os crimes de corrupção, visa criar um ambiente propício ao
combate à criminalidade do colarinho branco ao incentivar que a empresa
“arrependida” compareça aos órgãos públicos e ao Ministério Público e informe
ter participado de crimes contra a administração pública e/ou contra a ordem
econômica, com a indicação de coautores e provas desses atos criminosos.
Trata-se, portanto, de um mecanismo de multiplicação da punição e ressarcimento,
como a colaboração premiada o é para criminosos, onde se abre mão da punição
ampla dessa empresa pela punição dos demais envolvidos. Um efeito dominó,
portanto, que permite a aplicação de medidas punitivas administrativas e
criminais a outros além da figura do leniente, mas que também desincentiva
comportamentos criminosos futuros pelo exemplo da punição.
Entretanto, o que o Governo pretende é a desvirtuar esse
mecanismo, pois os acordos de leniência visariam salvar essas empresas, com a
continuidade de suas atividades junto à Administração, podendo, portanto, serem
celebrados com todas as empreiteiras sem qualquer critério. A mensagem aqui,
observe-se, é o mesmo de sempre: “aja errado e, se você for poderoso e for
pego, nós iremos dar um jeito de resolver seu problema”.
ESTADÃO: A Lava Jato entra numa fase crucial, sobretudo
com relação aos processos contra o cartel de empreiteiras. Em alegações finais,
a força-tarefa pede mais de 30 anos de prisão para os executivos da OAS. O sr.
acha que os tribunais superiores manteriam eventual condenação?
PROCURADOR CARLOS LIMA: Não pediríamos se não fosse nossa
convicção. É claro que ninguém, em Direito, é dono da verdade, mas é preciso
distinguir o que é divergência de entendimentos do puro arbítrio judicial. O
que esperamos, sinceramente, é que a antiga advocacia, verdadeira indústria da
nulidade, não mais prevaleça, pois historicamente temos diversas operações
importantes anuladas pelos mais absurdos motivos. Por sorte, a Operação Lava
Jato faz acreditar que essa advocacia, reflexo do compadrio prevalente em nossa
sociedade, faleceu.
ESTADÃO: Mais de um ano depois da deflagração da fase
ostensiva da Operação Lava Jato o que tanto preocupa a força-tarefa?
PROCURADOR CARLOS LIMA: O que nos preocupa é não
conseguirmos montar para a população um quadro completo da corrupção, da
cartelização, das mais diversas fraudes, enfim, da extensa criminalidade que
permeia as relações público-privadas em nosso país. Cada acusação é como uma
pequena peça de um imenso quebra-cabeça, e precisamos encaixar um número
suficiente de peças desse puzzle para que todos que olharem esse conjunto
possam saber como ele ficaria se completo. Só assim a população poderá separar
o joio do trigo e poderemos enfim refundar nossa República.