Na entrevista a seguir ao repórter Jefferson Puff, BBC Brasil, o jurista Miguel Reale Júnior diz que o PSDB já tem todo o arsenal jurídico capaz de suportar pedido de impeachment de Dilma Roussef, mas que a bala de prata será usada no momento político correto.
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Um dos mais importantes juristas do país, o advogado e
professor de Direito da USP Miguel Reale Jr. exerceu influência num dos
momentos mais importantes da história recente do Brasil, ao ajudar a redigir a
petição de impeachment do ex-presidente Fernando Collor de Mello, em 1992.
Nesta terça-feira, ele volta aos holofotes como redator
de outra petição - a ser entregue ao procurador-geral da República, Rodrigo
Janot -, que acusa a presidente da República, Dilma Rousseff, de crimes contra
as finanças públicas e de falsidade ideológica.
Ex-ministro da Justiça do governo Fernando Henrique
Cardoso, Reale Jr. acompanha a cúpula do PSDB há décadas e tem manifestado
fortes críticas ao governo, dizendo que Dilma deveria renunciar ao cargo,
embora tenha aconselhado os tucanos a não darem prosseguimento ao pedido de
impeachment.
"Não foi um recuo. Foi uma questão de estratégia, de
saber qual era o melhor caminho neste instante. Muito pelo contrário, o
processo criminal é mais grave do que o impeachment", disse em entrevista
à BBC Brasil.
A base da acusação são as "pedaladas fiscais".
Em auditoria realizada pelo Tribunal de Contas da União (TCU), apontou-se que,
no ano passado, o governo atrasou repasses para bancos públicos, como a Caixa
Econômica Federal e o Banco do Brasil para o pagamento de benefícios sociais
como Bolsa Escola e Bolsa Família. Os bancos pagam em dia, e cobraram juros, o
que configuraria empréstimo de banco público ao Tesouro, prática proibida pela
Lei de Responsabilidade Fiscal.
Leia mais: Existe base para impeachment de Dilma?
Veja os principais trechos da entrevista:
BBC Brasil - A pedido do PSDB, em seu parecer o senhor
não identificou subsídios jurídicos para um pedido de impeachment, mas, nesta
terça-feira, os partidos de oposição entram com pedido de ação penal por crime
comum, redigido pelo senhor, contra a presidente Dilma Rousseff. Caberá ao
procurador-geral da República, Rodrigo Janot, arquivar ou enviar o pedido ao
STF. Como se deu essa guinada de estratégia?
Miguel Reale Jr. - Diante da complexidade e a chance
de arquivamento de um pedido de impeachment, nos atentamos para a possibilidade
da ação por crime comum, presente no Código Penal. Por isso todos os partidos
de oposição estão entrando nesta terça-feira com um pedido para apuração da
responsabilidade da presidente da República por crime comum, que não tem o
obstáculo de só poder ter ocorrido no mandato atual da presidente. Estamos
falando das "pedaladas fiscais" como base da acusação nesta petição.
A população talvez não se dê conta da importância desses
fatos, mas as "pedaladas" impactaram as finanças públicas e é o
controle das finanças públicas que impede a inflação e a estagnação econômica.
E houve a mais absoluta irresponsabilidade, porque ao não ter dinheiro para
cumprir com seus compromissos mais importantes, como Bolsa Família, Seguro
Desemprego e Minha Casa, Minha Vida, o governo se valeu de empréstimos que
contraiu com as entidades financeiras que o próprio governo dirige, o que já é
crime por si só, pois a lei proíbe isso.
Tudo isso prejudicou as contas públicas, e foi maquiado,
caracterizando também um crime de falsidade ideológica ao deixar-se registrar
esses empréstimos como despesas, criando assim um superavit primário. Foi um
superavit fictício.
Isso permitiu dizer, na campanha eleitoral do PT, que
tudo corria bem, e que o país seria alvo de investimentos e de crescimento do
PIB, sem inflação. E o que aconteceu foi exatamente o contrário. A petição se
baseia no artigo 359, de crimes contra as finanças públicas, e no artigo 299,
de falsidade ideológica, ambos do Código Penal. A população tem que se
conscientizar de que essas "pedaladas fiscais" não são um mero
problema contábil, e sim um problema muito próximo.
BBC Brasil - Entre os movimentos sociais pró-impeachment
há críticas ao PSDB, por ter "voltado atrás" ao decidir entrar com
uma ação penal comum, e não um pedido de afastamento da presidente. Como o
senhor se posiciona? E por quê o pedido de ação penal é apresentado ao
procurador-geral da República?
Reale Jr. - Esta ação de crimes comuns tem na
verdade o mesmo efeito do impeachment, que é o afastamento da presidente de
suas funções enquanto o processo é julgado, caso seja aceito. A acusação será
entregue nesta terça-feira ao procurador, e ele tem a possibilidade de
arquivá-la ou encaminhá-la ao STF. Ao encaminhá-la ao STF, os ministros da
Suprema Corte têm que requerer autorização da Câmara para processar a
presidente. Dada a autorização por votação com dois terços dos parlamentares, a
presidente fica 180 dias afastada do cargo.
Então o efeito é o mesmo, e portanto estão enganados
aqueles que dizem que o PSDB voltou atrás. Nós fizemos aquilo que é o mais
aconselhável neste momento, até porque o impeachment não fica proibido de ser
interposto, mesmo porque novos fatos estão ocorrendo a todo instante, com os
novos desdobramentos dos depoimentos da Operação Lava Jato.
BBC Brasil - O senhor diria então que o PSDB não recuou
após o parecer em que o senhor desaconselhou o partido a entrar com pedido de
impeachment?
Reale Jr. - Não. Não houve recuo. Foi uma questão de
estratégia, de saber qual era o melhor caminho neste instante. Não é um recuo.
Muito pelo contrário, o processo criminal é mais grave do que o impeachment.
Mas como isso ficou na cabeça das pessoas, vulgarizado, passou-se a achar que
era uma coisa muito simples. Não é bem assim. Para começo de conversa, para o
impeachment, é necessário ter-se o apoio de dois terços da Câmara e do Senado.
E depois há muita diferença entre chegar ao Congresso um
pedido de impeachment de um partido, ou de um grupo de juristas, e chegar um
pedido do Supremo Tribunal Federal, movimentado pelo procurador-geral da
República. O presidente da Câmara pode arquivar esses pedidos facilmente. Agora
com um requerimento do Supremo, o peso é muito maior para que ele coloque em
votação. Ele pode rejeitar, mas não pode arquivar. Um pedido do STF para que a
presidente seja processada é algo muito forte.
Leia mais: Qual é a saída para Dilma? Analistas e
políticos listam três áreas de atuação
BBC Brasil - Quais devem ser as chances reais deste
pedido de investigação da presidente da República ser aceito e começar a
tramitar em Brasília?
Reale Jr. - Veja bem, procurando ter um
distanciamento do trabalho que eu mesmo revisei, eu acho que a petição de
representação por crime contra a presidente está muito bem fundamentada. Não se
trata de algo político. Não é uma peça política. Trata-se de uma peça técnica,
jurídica, fundamentada em laudos e pareceres do Tribunal de Contas da União
(TCU). É uma petição muito consistente, e acho difícil que venha a ser
arquivada pelo procurador.
BBC Brasil - Caso seja processada, como a presidente se
defende das acusações?
Reale Jr. - Neste caso a presidente apresenta sua
defesa, com um advogado, perante a Câmara dos Deputados, no sentido de evitar
que a acusação seja acolhida. Ela se apresenta e se defende no Congresso, mas
quem julga a ação é o STF. Havendo condenação, não é necessário impeachment,
ela é afastada do cargo de forma permanente tão logo seja proferido tal
veredicto pela Suprema Corte.
Jurista diz que situação econômica "difícil" é
ponto semelhante entre impeachment de Collor e atual momento do governo Dilma
BBC Brasil - Na quarta-feira a marcha do Movimento Brasil
Livre (MBL) chega à Brasília, depois de caminhar por mais de um mês, desde São
Paulo. O grupo é pró-impeachment e diz querer influenciar o Congresso neste
sentido. Como o senhor avalia a atuação destes grupos que insistem no
afastamento da presidente?
Reale Jr. - O principal movimento social contra o
governo, que é o Vem Pra Rua, se descolou destes que estão andando e passou a
apoiar o pedido de ação por crimes comuns. Não adianta querer o impeachment,
tem que avaliar. Falta informação. Por que insistir num caminho mais difícil?
Por que não deixar o impeachment para um momento em que haja mais elementos? O
impeachment virou palavra da moda.
Eu acho que os movimentos de rua são importantes, mas
também não são donos da verdade. Até porque eles têm várias reivindicações
diferentes. Eu creio que o mais sereno, e que aliás reúne o maior número de
pessoas, é o Vem Pra Rua. Eles entendem que o impeachment deve ser pedido, mas
num momento mais apropriado.
BBC Brasil - Em 2001, um grupo de juristas de renome,
como Dalmo Dallari, Fabio Konder Comparato e Celso Antônio Bandeira de Melo,
entrou com um pedido de impeachment do então presidente Fernando Henrique
Cardoso (PSDB), pela suposta compra de votos de parlamentares para aprovação da
emenda da reeleição. Presidente da Câmara na época, o hoje senador Aécio Neves
(PSDB), arquivou o pedido. Como o senhor se posiciona? Se o pedido fosse hoje,
teria chances de ser aceito?
Reale Jr. - Eu sei que houve esse pedido, mas eu não
tenho conhecimento sobre os detalhes. Essa é a dificuldade de um pedido de
impeachment. Por mais ilustres que sejam os requerentes, há que se ter muitos
elementos.
Leia mais: Sarney diz que impeachment 'não tem sentido':
Dilma é 'sacerdotisa do serviço público'
BBC Brasil - Mas o senhor considera acertada a decisão do
então presidente da Câmara de arquivar o pedido?
Reale Jr. - Nunca se estabeleceu qualquer ligação do
presidente com esses fatos. As indicações são de que haveria governadores
interessados nestes votos e houve dois deputados que foram expulsos por conta
deste caso.
BBC Brasil - Num artigo intitulado "Renúncia
Já", publicado no jornal O Estado de S. Paulo no dia 7 de março,
o senhor defende, por uma série de argumentos, que a presidente abandone o
cargo. Embora em seu parecer não tenha orientado o PSDB a protocolar um pedido
de impeachment, no artigo o senhor diz que "Dilma não tem condições éticas
e políticas para governar". Poderia explicar?
Reale Jr. - O impeachment é um processo político que
tem uma série de dificuldades. Ele passa primeiro pelo crivo do presidente da
Câmara, que já arquivou 30 pedidos de impeachment somente neste ano. Ele pode
arquivar, e há que se perguntar se Eduardo Cunha teria interesse na saída de
Dilma ou se prefere manter a satisfação de mandar por trás. Entraríamos também
na discussão novamente se para o impeachment podem ser levados em conta atos
praticados no mandato anterior. O fato é que este governo está extremamente
desgastado e incapacitado.
BBC Brasil – O senhor foi um dos juristas que redigiu o
pedido de impeachment do ex-presidente Fernando Collor de Mello, em 1992. Na
sua opinião, há semelhança entre a situação do país e os manifestantes da época
com o contexto atual?
Reale Jr. – Acho que a única semelhança entre os
dois momentos é a situação econômica bastante difícil para a população. Em
1992, a inflação retornava e os gastos públicos estavam fora do controle, e
isso se repete agora em 2015.
A crise já deveria ter acontecido em 2014, mas houve todo
um esforço de maquiagem para que não ocorresse. No plano político, são
panoramas completamente diferentes e os fatos que foram objeto do processo de
impeachment de Collor eram diferentes. Collor era um franco-atirador, não tinha
partido político, não tinha uma história política.
Havia uma corrupção generalizada, mas o fato que recaía
sobre o presidente era muito pontual: os contratos firmados por PC Farias e o
esquema montado, o dinheiro depositado nas contas dos envolvidos, para, dentre
outras coisas, pagar as contas da Casa da Dinda.
BBC Brasil – O senhor vê semelhanças entre os caras
pintadas, que foram às ruas em 1992, e os manifestantes pró-impeachment, de
2015?
Reale Jr. – Em 1992, havia um pedido de impeachment
e uma oposição ao Collor, como existe hoje uma oposição à Dilma e uma oposição
ao PT. O próprio Lula começa a sentir os efeitos de uma redução de popularidade
significativa.
Mas há uma diferença primordial entre as duas épocas. Com
o PT, o que está havendo é um imenso esgotamento, mais prolongado. Faz dez anos
que o Roberto Jefferson denunciou o mensalão, e de lá para cá a política virou
caso de polícia. Virou discussão sobre algemas, pulseiras eletrônicas, delação.
E ainda surgiu o petrolão, o que levou a um cansaço ainda
maior da população com a corrupção. Tudo isso é extremamente desgastante, e a
revolta afeta a todas as classes sociais. Não é apenas uma elite branca, como
se pretendeu dizer. O PT empreendeu uma ocupação do Estado.
As empresas públicas, a Petrobras, o número de empregos
que foram criados na petroleira para acomodar os apadrinhados. Isso se soma ao
processo de estagnação da economia, inflação e desânimo. É um quadro
socialmente muito negativo.