• O avanço irrefreável da Lava Jato desloca o centro de
poder de Brasília para Curitiba, contam na edição deste final da revista Época os repórteres Thiago Brozatto, Leandro Loyola e Diego Escostoguy.
Leia tudo, porque vale a pena:
Nas noites dos últimos dias, o juiz federal Sérgio
Fernando Moro, da 13a Vara Federal de Curitiba, após botar os filhos para
dormir e checar os últimos e-mails do dia, dedicava-se, quando ainda tinha
forças, à leitura de uma coletânea de artigos sobre os 20 anos da Operação Mãos
Limpas. A megainvestigação logrou o que parecia impossível: expurgar do Estado
italiano organizações mafiosas centenárias. Os acertos - e os erros - dos
juízes italianos ajudavam Moro a refletir sobre as melhores estratégias para conduzir
a Operação Lava Jato. Como fechar os casos ainda em aberto e, ademais, como
avançar naqueles que se avizinham rapidamente? Nas mesmas noites, não muito
longe da casa do juiz, mas no frio da carceragem da Polícia Federal em
Curitiba, para onde fora transferido, dividindo cela com o doleiro Alberto
Youssef, Nestor Cerveró, o ex-diretor internacional da Petrobras condenado a
cinco anos de prisão por Moro, tinha ataques de pânico. Pressionado pela
família, especialmente pelo filho, Cerveró cedeu. Resolveu cojitar o que sabe,
como apostavam Moro e os procuradores da força-tarefa da Lava Jato. E Cerveró
sabe muito.
Cerveró chamou os procuradores e, à revelia de seu
advogado, começou a negociar os termos para se tornar o 20" delator da
Lava Jato. Segundo políticos, empresários, investigadores e lobistas da
Petrobras, somente duas pessoas podem esclarecer, entre outros contratos
inexplicáveis na Área Internacional, a infame operação de compra da Refinaria
de Pasadena, há quase dez anos. Nela, a Petrobras perdeu cerca de US$ 800
milhões. Uma é o operador Fernando Baiano, ligado ao PMDB e que atuava em
parceria com Cerveró. Baiano está preso, Ele, porém, não exibe nenhum sinal de
que pode vir a talar. A outra pessoa é o próprio Cerveró,
De acordo com essas fontes, ouvidas por ÉPOCA nos últimos
anos e, também, nos últimos dias, Cerveró, se falar o que sabe, sem esconder
nenhum fato, pode causar um estrago político devastador, ainda mais
considerando-se o acúmulo incessante de provas da Lava Jato nas semanas recentes.
Tanto Baiano quanto Cerveró confidenciaram - e não agora a essas fontes que a
operação de Pasadena além de outras na Diretoria Internacional beneficiaram o
presidente do Senado, Renan Calheiros, do PMDB, parlamentares do PT e até o
empresário José Carlos Bumlai, um dos melhores amigos do ex-presidente Luiz
Inácio Lula da Silva. Em miúdos: beneficiaram todos aqueles que o indicaram ao
cargo, como já se comprovou que era a prática nas demais diretorias. Bumlai,
que freqüentava a intimidade do petista, falava em nome de Lula durante o
segundo mandato do petista. E tinha relações estreitas com o grupo Schain, que
obteve contratos na Petrobras com a ajuda de Cerveró. Todos os citados sempre
negaram qualquer relação imprópria com Cerveró.
Edson Ribeiro, o advogado de Cerveró, chegou a Curitiba
na quinta-feira da semana passada, disposto a fazer de tudo para demovê-lo da
delação, O advogado disse a Cerveró ter certeza de que os executivos da
Odebrecht, também presos na Lava Jato, conseguirão decisões judiciais
favoráveis no recesso do Judiciário, daqui a alguns dias, seja no Superior
Tribunal de Justiça, seja no Supremo Tribunal Federal. Se gente como
Marcelo Odebrecht sair da cadeia, raciocina o advogado, outros sairão em
seguida, como Cerveró. Até a noite da sexta-feira, os argumentos do advogado
não foram suficientes para convencer Cerveró. Ele continua negociando os termos
da delação com os procuradores. E demonstra uma mágoa especial pela presidente
Dilma Rousseff. Sente-se abandonado por ela - que, como presidente do Conselho
de Administração da Petrobras, aprovou a compra da refinaria de Pasadena. Em
suas defesas entregues às autoridades, Cerveró alega que a responsabilidade
pelo investimento em Pasadena é do Conselho de Administração da estatal. Ou
seja, de Dilma.
A iminência da delação de Cerveró, decidida nos gabinetes
e nas celas de Curitiba, revela como, no Brasil de 2015, o poder sobre os rumos
da nação deslocou-se, momentaneamente, para a capital do Paraná. Se levada a
cabo, a delação de Cerveró terá impacto em gente do calibre de Lula e Dilma.
Por isso, um rastilho silencioso de pólvora - e pânico - acendeu-se até
Brasília. Políticos e empresários poderosos ficam à mercê, mais uma vez, como
acontece desde outubro, com as delações de Paulo Roberto Costa e Alberto
Youssef, de fatos sobre os quais eles não têm o menor controle - e, muitas
vezes, nem sequer compreendem.
Essa mudança, ainda que temporária, nas regras do jogo,
no controle da situação, explica parte das falas e ações destemperadas de políticos
experientes, como Lula, ou até aqui cautelosos com o verbo, como Dilma. A
combinação de crises pela qual passa o Brasil hoje converge, cotidianamente,
para Curitiba. Os rumos das principais decisões políticas neste momento
definem-se, mesmo com uma economia malparada e um governo anêmico, pelo que
acontece na Operação Lava Jato. A sucessão de provas, de delações, as imagens
quase semanais de tesoureiros e executivos sendo presos pela polícia
sobrepõem-se a qualquer processo político e econômico em Brasília. Por uma
razão simples: as decisões de Curitiba põem em risco a sobrevivência dos
principais partidos e políticos do Brasil. O mesmo vale para as principais
empreiteiras do país.
Nenhum gabinete, portanto, concentra tanto poder neste
momento no Brasil quanto aquele no 2° andar na Avenida Anita Garibaldi, 888. É
de lá que despacha Sergio Moro, o cérebro e centro moral da Lava Jato. A
Operação, na verdade, envolve dezenas de procuradores da República, delegados e
agentes da PF, equipes na Procuradoria-Geral da República, em Brasília, além do
ministro do Supremo Teori Zavascki. Todos têm poder para definir, em alguma
medida, os rumos das centenas - isso, centenas - de casos de corrupção
investigados na Lava Jato. Alguns casos tramitam em Brasília - aqueles que
envolvem políticos com foro no Supremo. Mas a maioria fica em Curitiba e de lá
não sai. Moro alia virtudes raríssimas para a missão: preparo jurídico,
pensamento estratégico, inflexibilidade de princípios, coragem moral e
disciplina de trabalho. Entra cedo, sai tarde e prossegue na lida mesmo de
casa. Alguns dos procuradores da força-tarefa compartilham, em maior ou menor
grau, as mesmas características. Estudaram muito, trabalham sem parar e
entendem que estão fazendo história.
Após mais de um ano de Lava Jato, já está claro que esses
homens e mulheres - pelo tamanho dos presos, pela força das provas, pelos nomes
envolvidos e pelo dinheiro recuperado - estão promovendo uma revolução na luta
contra a grande corrupção no Brasil. O método, a estratégia e a disciplina para
manter o foco nos alvos certos, como Cerveró ou Marcelo Odebrecht, demonstram
que essa revolução, cujo acúmulo intenso de fatos desnorteia até o observador
mais atento, irá longe. A partir das delações capitais de Paulo Roberto Costa e
Alberto Youssef, em outubro do ano passado, surgiu a obtenção de mais provas,
como extratos bancários de contas em paraísos fiscais e a confissão dos demais
envolvidos. O efeito cascata, irrefreável, parece destinado a parar apenas
quando todos os envolvidos no petrolão, esse esquema que envolvia empresas
inescrupulosas e políticos corruptos, estejam identificados e devidamente
processados. É uma réstia de esperança para um povo que precisa,
desesperadamente, acreditar novamente em seu sistema político.
Engana-se, porém, quem pensa que Moro ou os procuradores
da Lava Jato tenham ganas de pegar Lula ou Dilma. Na visão deles, e que as
provas de fato oferecem (até o momento), Lula e Dilma não eram chefes de uma
organização criminosa. Não que ambos não tenham responsabilidade pela
sustentação política do petrolão - pelo aval, no mínimo, tácito aos resultados
de suas decisões fisiológicas, de distribuição irresponsável de cargos na
Petrobras. Mas a decisão de distribuir diretorias da estatal não é crime. O
petrolão é, pelo que as evidências apontam até o momento, um esquema
horizontal, organizado entre empresários corruptores e funcionários públicos
corruptos. Entre as duas partes, havia operadores de partidos políticos e
doleiros. Todos ganhavam, especialmente os políticos dos partidos (PT, PMDB e
PP, sobretudo) que controlavam os cargos. Não havia chefes. Havia apenas
cúmplices na roubalheira.
Há muitas novidades, no entanto, a caminho. Nestor
Cerveró, o quase certo 20* delator, trará apenas parte delas. A 164 fase da
Lava Jato não tarda. E ela será decidida em Curitiba, para desespero do poder
em Brasília.
A perplexidade na república
Na segunda-feira, numa rara noite bastante fria em
Brasília, em um centro de convenções afastado de tudo, Lula se reuniu com cerca
de 50 parlamentares petistas por mais de três horas. Vinte deles se inscreveram
para falar. Depois, Lula também talou. Estava surpreendentemente calmo. Falou
um pouco sobre a situação difícil do governo e do PT para, em seguida, assumir
a função de animador de auditório, a tentar vender a seus comandados a ideia de
que é possível sair do atoleiro no qual o governo e o partido estão graças à
crise econômica, à Operação Lava Jato e a diversos erros e ffagilidades.
"Não tem o que fazer. O procurador (geral da República, Rodrigo Janot) já
disse que vai durar mais uns dois anos", disse Lula aos parlamentares.
O Lula que chegou no dia seguinte â casa do presidente do
Senado, Renan Calheiros, do PMDB, também era só paz e amor. Lá, tomou café da
manhã com a cúpula do PMDB, formada por Renan, Eunício Oliveira, Romero Jucá e
o ex-presidente José Sarney, além do líder do governo, Delcídio Amaral. De bom
humor, Lula disse que "um padre" foi o responsável por vazar seu
desabafo sobre o PT e o governo. Ninguém entendeu nada."Parecia o Lula do
mensalão: estava humilde", diz um dos participantes - em 2005, acossado
pelos estragos do mensalão, Lula se escorou em Sarney e no PMDB, que então
adentrou seu governo para não mais sair. Ao contrário dos vários encontros
ante-riores com os mesmos personagens, no mesmo lugar, pelo menos dois deles
ocorridos neste ano, Lula não falou mal de Dilma, nem mesmo de Mercadante.
Retomou a veia conciliadora que ficara para trás, para tentar unir os cacos tia
relação do PMDB com Dilma. "Renan, eu sei que você tem mágoa de coisas que
podem ter sido feitas. Mas as instituições precisam se unir. O Brasil não pode
ficar assim", disse. Renan, todos sabem, atribui ao governo o fato de ter
sido incluído no rol dos investigados pela Operação Lava Jato - na verdade, sua
mágoa é pelo fato de Dilma não ter segurado seu afilhado Sérgio Machado na
presidência da Transpetro.
Todos na casa de Renan estavam incomodados com a Operação
Lava Jato. "Não é possível que as instituições estejam tão fracas, a ponto
de o Supremo ter uma decisão alterada por um juiz de primeira instância",
disse um dos presentes, em referência ao Juiz Sergio Moro. O ex--presidente
José Sarney lembrou o exemplo da Suprema Corte americana na eleição de 2000: o
então vice-presidente Al Gore venceu a eleição contra George W. Bush na
recontagem dos votos, mas, a partir do momento em que a Suprema Corte decidiu
em favor de Bush, Gore e seus aliados nada fizeram. O pessoal da reunião acha
que Moro e a Lava Jato precisam de um breque desse tipo do Supremo. Lula foi
cobrado por isso, dada sua influência de ter nomeado ministros do Supremo. Mas
até ele se mostrou surpreso — deu a entender que não espera mais deter a Lava
Jato. "O José Rainha (líder de uma parte do Movimento Sem-Terra) foi condenado
a 31 anos e não vai para a cadeia", disse Lula. "Como pode os caras
que nem foram condenados estarem presos?" Os "caras" que
preocupam Lula são os empreiteiros. Em especial, Leo Pinheiro, da OAS, já
solto, e Marcelo Odebrecht, ainda na cadeia, seus mais próximos parceiros. Há
anos, quem importa no poder e na economia no Brasil sabe que Lula trabalhava
para as empreiteiras, em especial para a Odebrecht. Como ÉPOCA demonstrou há um
mês, Lula fez lobby pelas empreiteiras em países da América Central e da África,
para que obtivessem obras em boa parte financiadas com recursos do BNDES. As
mesmas empreiteiras que, hoje, estão no chão devido ao escândalo que sangrou
bilhões da Petrobras e distribuiu para o PT, o PP e o PMDB. No momento, Lula
está fragilizado. A Lava Jato prendeu seus amigos empreiteiros por causa desse
esquema, aqueles amigos que podem fazer revelações incômodas. O executivo Leo
Pinheiro não é uma preocupação, mas Marcelo Odebrecht é considerado mais
instável. Para piorar, nos últimos meses Lula percebeu que Dilma não se esforça
para evitar que os efeitos da Lava Jato atinjam a ele e a seus oito anos de
governo. Lula precisa se salvar. A saída é tentar reagrupar o PT a seu
redor-exatamente o oposto do que havia feito no desabafo no encontro com os religiosos.
Com água nos calcanhares, Lula enxerga em Dirceu, este
com água no nariz, um desfecho possível. Ao longo da semana, o nome do
ex-ministro José Dirceu liderava a bolsa de apostas dos novos presos da Lava
Jato. O falatório foi decorrente de duas delações que deixaram o petista numa
sinuca: a de Ricardo Pessoa, da UTC, e a de Milton Pascowitch, operador da
Engevix. Ambos relataram que os pagamentos para Dirceu não tinham uma
contraprestação de serviços - e que ele recebeu dinheiro inclusive quando
estava preso. A iminente prisão do ex-ministro mensaleiro foi tão grande que
seu advogado, Roberto Podval, entrou com um pedido de habeas corpus preventivo,
com o objetivo de evitar que Dirceu pudesse voltar ao regime fechado. O pedido
foi negado. Além disso, a defesa do ex-ministro começou a se mobilizar para
levantar provas no Peru de que suas consultorias de fato existiram - e não
foram de fachadas. Segundo pessoas próximas de Dirceu, boa parte do dinheiro
recebido por meio de sua empresa JD Assessoria e Consultoria era usada para
fretar jatinhos particulares para fazer viagens pelo Brasil, já que ele evitava
pegar voos comerciais, pois tem receio de ser vaiado, e para pagar hospedagens
em hotéis luxuosos onde costumava passar alguns dias ao lado de sua namorada.
Nesse cenário, Lula percebeu que o discurso de raiva
contra seu PT e o governo de Dilma causou-lhe um efeito ruim. Boa parte dos
petistas não abaixou a cabeça em obediência, como sempre fazia. No momento em
que o governo vai mal, Lula sabe que pode carregar a culpa pelo fracasso do
governo Dilma. Para Dilma, que não deve ser candidata a mais nada, o fracasso
pode ser apenas uma derrota pessoal Mas, para Lula, pode matar seu projeto de
um novo período na Presidência. Ele tem muito mais a perder do que ela. Com
seus amigos empreiteiros na cadeia, paira sobre Lula o medo de ver uma mera
menção a seu nome em algum depoimento. Lula precisa de apoio. Reatar com o PT
para se salvar é uma parte da saída. A outra parte começa com a conversa com o
PMDB. Os líderes do PMDB são saudosos de Lula. Sempre lembram que ele lhes
prometeu, em dois encontros em 2014, um deles no hotel Blue Tree, em Brasília,
e outro no hotel Meliá, em São Paulo, que seria candidato a presidente no lugar
de Dilma. Depois voltou atrás.
A intenção de Lula é combater os efeitos negativos da
Lava Jato em sua imagem, na do governo e do PT com o que ele sabe fazer melhor:
discursos e propaganda. Não por acaso, Lula esteve com o marqueteiro-mor do PT,
João Santana, antes da reunião com os parlamentares, em Brasília. À noite, Lula
estabeleceu que os petistas devem aproveitar programas do governo para fazer
"agendas positivas". Entre os programas estão o Plano Nacional de
Educação, o Plano Safra, o plano de concessões, o plano de assentar famílias da
reforma agrária. Lula quer que os parlamentares organizem eventos em seus
Estados para discutir principalmente o Plano Nacional de Educação e a renovação
do PT, pretextos para ele viajar pelo país e fazer discurso, uma pré-campanha
eleitoral Lula também quer que os parlamentares petistas partam para o
"enfrentamento" com a oposição. "Com a mesma agressividade que a
oposição ataca o governo, afirma o líder do PT na Câmara, José Guimarães. Lula
está preocupado com a possibilidade de uma derrota fagorosa do PT na eleição
municipal de 2016. É preciso começar a trabalhar para limpar um pouco a barra
do PT para, pelo menos, reduzir o prejuízo que hoje os petistas acreditam que
será grande. Está muito longe, mas é óbvio que Lula já pensa também em 2018.
Apenas quem não entendeu o poder de Curitiba pode pensar em 2018. No gabinete
do juiz Moro, só se pensa em 2015. ?